Arquétipo do Artista Sofrido

terça-feira, setembro 06, 2022

A imagem mostra uma fotografia de um estojo de tinta guache bem de pertinho, com as tintas coloridas e sujando um pouco do estojo

Vi uma pessoa comentando recentemente que, quando ela estivesse no fundo do poço, criaria obras (artísticas) inimagináveis. Era um desses comentários de internet que a gente não sabe se é real, meme, piada ou piada com fundo de verdade. Mas dei risada da ingenuidade da pessoa. Poucas pessoas conseguem produzir coisas inimagináveis quando estão no fundo do poço, geralmente só sai lixo mesmo (isso quando sai alguma coisa). De qualquer forma, ainda que desse pra produzir belas artes™ quando se está no fundo do poço, seria um preço que vale a pena pagar? Tenho certeza qualquer pessoa que já tenha se considerado no fundo do poço diria que não.

De forma parecida, um amigo (que já não é amigo mais), comentando sobre os desenhos que eu fazia, e os textos que escrevo, desenhos e textos que ele gostava muito, me perguntou: trocaria toda sua arte por uma saúde mental "assim"? (assim = estável, sem problemas, não acordando querendo morrer todo dia). Era uma pergunta retórica, como se a arte que eu produzia fizesse valer a pena minha saúde mental esculhambada na época. A resposta, meus amigos e amigas, é clara, óbvia, e eu não preciso nem pensar duas vezes sobre o assunto: é claro que eu trocaria toda minha arte por uma saúde mental estável. Eu trocaria qualquer coisa por uma saúde mental estável. Os textos que escrevo e meus desenhos meia boca seriam um preço pequeno a se pagar. Não é como se o mundo fosse perder um Neil Gaiman da vida.

Particularmente detesto o arquétipo de artista sofrido. O artista deprimido, que passa o dia todo à base de café e cigarro, triste e fazendo obras melancólicas sobre como a vida é difícil, como o mundo é injusto e como ele é azarado e tudo de ruim acontece com ele. Dessa tristeza patológica e da dor no coração o artista sofrido tira obras sublimes, eternas, transcendentais, que outras pessoas usufruem, se emocionam, compartilham umas com as outras e voltam pras suas vidas normais, com sonhos, desejos e esperanças, que o artista-sofrido não experimenta porque está adoecido e está usando sua dor pra criar obras de arte. Volto à pergunta de antes: se isso fosse verdade, valeria a pena? Acredito que para as outras pessoas, sim, pro artista-sofrido arquetípico, não. Só quem já acordou com o peso de 5 toneladas no peito e não conseguiu levantar da cama sabe do que estou falando.

Como diria os jovens, "tem que acabar" a ideia de que precisa estar deprimido, sem esperança, no fundo do poço pra fazer arte. Dá pra produzir arte no fundo do poço? Acredito que sim, mas uma coisa não necessariamente depende da outra. Também dá pra produzir arte da alegria, da esperança, do deslumbramento com o mundo (o oposto daquela ideia de que o mundo é uma merd*). Falando da minha experiência, eu crio melhor, eu escrevo melhor, eu desenho melhor, eu faço tudo melhor quando estou com esperanças e levantar da cama de manhã não é um peso insustentável. E, ainda que eu fizesse tudo meio tosco, ou que eu não fizesse nada at all, eu ainda ia preferir levantar da cama de manhã. Vocês já viram o mundo lá fora? É divino, ainda que não seja perfeito.

Tudo isso apenas para dizer que, embora dê pra transformar dor em arte, você não precisa de dor como matéria-prima para fazer arte. Respondendo ao comentário da moça: é bastante provável que, quando você chegue no fundo do poço, esteja no fundo do poço demais pra se preocupar em fazer arte, e eu não recomendo chegar só pra isso. E o segundo comentário eu nem preciso responder, já que não cabe falar em "troca", quando eu acabei de dizer que as coisas não estão relacionadas. Muito mais fácil e tranquilo produzir com saúde mental estável, quase tão ruim quanto pensar o contrário (artista-sofrido) é pensar que artista precisa passar fome... mas isso é assunto pra outro post.

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2 comentários

  1. Concordo. Eu particularmente considero que meus melhores poemas saem quando estou melancólica, mas isso é diferente de estar no fundo do poço de fato. Como você mencionou, alguém que realmente está no fundo do poço não está dando a mínima pra fazer arte. O arquétipo do artista sofrido é extremamente romantizado.

    https://meustonsempastel.blogspot.com/ <3

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  2. Eu tenho a tendência a pensar em preguiça (tanto em ação quanto em pensamento), porque é mais fácil ver alguém fazendo algo e dizer que aquela pessoa é super dotada, do que você mesmo fazer algo. Ou qualquer coisa que acham difícil de fazer, elevam ao status de dom.

    Você falando do artista melancólico que bebe café e tudo mais, e eu só consegui visualizar o trabalhador assalariado atualmente se reclamando no twitter. Infelizmente não se fazem artistas melancólicos como antigamente, antes a galera ficava triste e ia produzir uma noite estrelada. Fica ai a reflexão sobre a rede social matando o potencial artístico/ criativo das pessoas depressivas/ ociosas. Eu tô sendo irônica mas também to considerando a reflexão kkkkk.

    Realmente é uma visão romantizada ou esperançosa de que pelo mesmo quando você estiver triste, vá servir pra alguma coisa produtiva. Não sei. A arte é condição do estado melancólico? Será se quando se estar em dor, você fica mais sensível a si mesmo e por isso consegue perceber e produzir coisas com mais emoção do que quando se está feliz e bem?

    Eu aprendi com o filme "divertidamente" kkkk que emoções tristes são mais latentes, então talvez essa associação e valorização da arte melancólica tenha relação psicológica. Eu vou parando por aqui, porque eu já não sei mais do que to falando....

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