Autora: Audrey Carlan
Ano: 2017
Editora: Verus Editora
Páginas: 364
Sinopse: Eu te amo. Eu te quero. Eu nunca vou te deixar." Gillian Callahan entra em pânico só de ouvir esse tipo de frase. Por anos ela viveu uma relação abusiva com seu ex-namorado violento. Agora ela está livre e segura, trabalhando para uma fundação de apoio a mulheres vítimas de violência - a mesma que a resgatou e salvou sua vida. Gillian não quer saber de homem nenhum. Até conhecer Chase Davis, o presidente da fundação. O bilionário é tão sexy e sedutor que Gillian fica sem chão. Chase sempre consegue o que quer - e ele quer Gillian.
Agora ela terá de enfrentar a batalha entre o desejo e o medo. Gillian vai conseguir confiar em Chase? Ela está segura com ele? E quão perigoso pode ser um passado sombrio... não só o dela, mas o do homem que ela aprendeu a amar?
Esse livro ficou parado na minha estante por alguns anos, esperando a vez de ser lido. Coloquei como meta de leitura várias vezes, mas acabei não conseguindo ler porque minha vida estava uma loucura até meados de 2019, e só agora, três anos depois do lançamento foi que consegui finalmente fazer a leitura. Como nada na vida acontece por acaso, foi ótimo não ter lido na época do lançamento, porque, com a experiência e conhecimento que tenho hoje, consegui uma visão muito mais crítica da história, e perceber fatos que não teria visto se tivesse lido anos atrás.
Pra entender do que estou falando, vamos a um resuminho básico do que se trata o livro: Corpo conta a história de Gillian Callahan, uma garota que se tornou forte, decidida e independente, após quase morrer vítima de violência doméstica, nas mãos de seu ex-abusivo Justin. Gillian se sentia culpada por tudo de ruim que acontecia no relacionamento, acreditando que Justin estava certo ao fazer o que fazia, até que finalmente é salva e tem sua vida transformada por uma instituição que acolhe e orienta mulheres vítimas de violência. Essa instituição hoje é o local de trabalho de Gillian, que possui um cargo em que consiste em angariar fundos para manter a instituição de pé. Apesar do tempo, da terapia e do grupo de apoio, Gillian ainda tem receio de se relacionar com homens novamente (o que é perfeitamente compreensível) até conhecer seu chefe Chase Davis, um bilionário rico, bonito, sedutor, bom de cama, etc e tal, e o resto vocês imaginam né? Pois é, é no relacionamento com Chase que as coisas se complicam.
Eu preciso ser sincera e dizer que a premissa de Corpo é muito boa, mas a execução é péssima. A ideia do livro era mostrar como uma relação abusiva deixa marcas na vida de uma pessoa, mesmo após anos do término dessa relação. Uma premissa como essa tem um potencial enorme se feito de forma crítica, caso contrário, acontece o que aconteceu com Corpo: a forma como a autora conduziu a história acabou contribuindo com a completa banalização da violência que a personagem sofreu, e ainda, sem querer, fazê-la cair em um novo relacionamento abusivo, justificando tudo como "romance". É claro que isso não fica totalmente claro a princípio, muito pelo contrário, como a maioria das relações abusivas (em que não há violência física), as coisas são muito sutis e difíceis de descrever, sobrando apenas a sensação de algo está errado, mas sem saber definir ou explicar exatamente o quê. Durante a leitura, eu mesma me senti na dinâmica de uma relação abusiva: tentando justificar o que acontecia de errado, me perguntando se eu não estava exagerando ou sendo paranoica e se os comportamentos que eu via como nocivos não era comportamentos "normais" de homens. Se no final a autora deixasse claro que o novo relacionamento de Gillian com Chase é abusivo e está longe de ser o ideal, o livro seria perfeito. Várias vezes me perguntei se a ideia não era justamente essa. Mas infelizmente não é, ao menos nesse volume (o livro tem várias continuações). A autora faz o pior possível ao falar sobre relações abusivas: naturaliza comportamentos nocivos, com a ideia de que "é assim mesmo", usa do "amor" para justificar ciúmes doentios, e ainda reproduz a noção completamente equivocada de que violência doméstica é somente violência física. Chase, em nenhum momento agride Gillian, mas a situação vai piorando aos poucos, até o momento em que ele tem total controle sobre sua vida, privando-a de sua liberdade, controlando sua vida pessoal e financeira, e a impedindo de tomar até mesmo as menores decisões em sua vida (como as roupas que vai vestir ou comprar). Isso também é violência.
Interessante observar que a construção de Gillian me agradou muito. Seus pensamentos, os receios que possui, o medo que sente me pareceu muito coerente em relação a sua história passada. A autora soube conduzir essa parte muito bem. Ela esteve em uma relação violenta que quase tirou sua vida, mas consegue se reerguer, retomar o controle de sua vida, se tornar uma mulher forte e independente. Ela é uma mulher incrível, e isso é bacana de ver. Mas é uma pena o que acontece no decorrer da história. Gillian vai se apagando, se ofuscando, se diminuindo cada vez mais pra agradar Chase. Ele é um homem controlador e inseguro, e ela cede a todos os seus caprichos, deixando de ser quem é, apenas para se adequar a ele. Gillian se importa com seu próprio trabalho, sua independência financeira, em tomar as decisões de sua vida, mas aos poucos Chase toma o controle disso tudo, e ela permite, apenas porque "o ama" e não quer vê-lo aborrecido. Em determinado momento ela se força (e usa exatamente essas palavras) a relaxar e confiar nele, apesar do medo que sentia (respeito pelo próprio corpo, oi?). Gillian chega ao ponto de fazer a comparação entre Justin (o ex que quase a matou) e Chase, mas ignora completamente a sensação de familiaridade entre os dois, justificando que Chase nunca a machucou nem machucaria, o que volta ao que eu mencionei logo no início: violência não é só socos, tapas, arranhões e machucados.
Necessário ressaltar que Corpo é um livro hot, e por isso mesmo é recheado com cenas de sexo. Infelizmente, as cenas de sexo trazem outro ponto problemático para o livro. Como a maioria dos romances hot, Chase é sedutor, atraente e bom de cama (faz parte né), e obviamente Gillian se sente extremamente atraída por ele. O problema começa quando Chase começa a usar da atração de Gillian e sua dificuldade em dizer não para suas carícias para manipula-la. Sempre que Gillian está se mostrando irredutível em algum aspecto ou discordando de Chase, ele inicia um monte de carícias e joguinhos até ela desistir do que queria. E isso acontece o tempo todo. Basicamente todos os diálogos dos dois, principalmente os mais complicados, começam ou terminam (ou ambos) com sexo e Gillian sempre desiste do que queria por causa desses momentos. Chega a ser frustrante de ler, apesar de Gillian discordar de suas tentativas de controlar sua vida, ela cede em todas as discussões, o que torna tudo uma perda de tempo: no fim, Chase sempre consegue o que quer. Nos poucos e raros momentos que Gillian não cedeu as suas vontades por causa de sexo, foi por um motivo muito pior: o homem estava com raiva demais e ela decidiu não discutir com ele naquele momento, por "saber onde isso iria terminar". Não preciso dizer o que significa uma mulher se calar diante de um homem por estar com medo de uma reação violenta, preciso? O cara chega até mesmo a socar a parede, deixa eu repetir com calma: chega a socar a parede DO LADO DE ALGUÉM QUE SOFREU VIOLÊNCIA DO ÚLTIMO NAMORADO, mas a autora insiste até a última linha que está tudo bem porque ele a ama e não bate nela [ainda]. Sinceramente? Estou cansada de livros como esse.
Corpo tem ainda muitos outros aspectos que eu poderia me estender infinitamente sobre, mas todos se tornam pequenos diante do cenário do livro: uma relação abusiva sendo justificada e naturalizada, se escondendo atrás do rótulo de romance. Diria que um dos poucos elementos interessantes do livro estão nas amigas de Gillian, que são também mulheres incríveis que mantém uma relação de irmandade umas com as outras (apesar de só aparecerem para falar de homem), e na escrita da autora, que torna o livro tolerável até o final. Eu diria que Corpo é um excelente livro pra ler, prestar bastante atenção na dinâmica do relacionamento do casal, e se um dia você encontrar alguém minimamente parecido com o Chase, correr para as colinas. Não existe pau no mundo que justifique passar por uma merda dessas. Se amem, se respeitem, façam terapia e pelo amor da Deusa não se espelhem em livros como esse.
- quinta-feira, fevereiro 20, 2020
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