A Estranha-que-não-é-estranha
e uma viagem na escada do ônibus

segunda-feira, setembro 11, 2017

Conversas com estranhos
Foto por Pexels
Domingo, fim de feriado, dia de voltar para JF. Horário do ônibus: 15:15. Peço carona ao meu pai até a rodoviária. Como sempre, saímos atrasados. Chego na rodoviária e o ônibus já está lá. Subo, pago a passagem e percebo com tristeza que a pessoa a minha frente sentou no último banco disponível. O ônibus SD/JF é roleta, e como tal, está sujeito a todas as situações que acontecem num roleta comum, inclusive a situação "entrar no ônibus e ficar em pé". Vou até o final apenas para me certificar que realmente não tinha mais banco vazio para mim. A decepção em meu rosto fica tão evidente que rola um sentimento de empatia entre os passageiros que estão sentados. Volto até o meio do ônibus e deixo minha mochila no chão, com preguiça de viajar em pé e com peso nas costas.

O ônibus sai da rodoviária e para no próximo ponto para pegar mais passageiros. Sobe uma mulher que, de forma inesperada, senta na escada onde as pessoas descem, de frente para a posta de saída. Olho para ela, surpresa, e antes que mais alguém resolva fazer o mesmo, sento ao seu lado. Só cabem duas pessoas na escadinha. Consigo ver o chão da estrada através do vidro, penso na possibilidade da porta abrir e eu cair na rua. Muito improvável.

Ela olha para mim e ri. Eu digo:
— Já que é assim, vou sentar também.
E ela:
— Mas você ia ir em pé? 
— Sim... Nem sabia que podia sentar aqui.
De fato, pensei na possibilidade, mas tive medo que o trocador me mandasse levantar, na frente de todas aquelas pessoas. Com ela, ao menos, a vergonha seria menor. 
— Iih menina! Já cansei de viajar aqui. Hoje que eu não esperava que o ônibus enchesse tanto, fiquei surpresa quando vi.
Nisso, iniciamos um diálogo sobre como o ônibus Santos Dumont - Juiz de Fora fica cheio em finais de semana, principalmente depois de um feriado prolongado. Expliquei pra ela que, em dias como esse, qualquer horário o ônibus fica cheio — ainda aproveitei para reclamar do absurdo que é a empresa não aumentar os horários, e deixar todo mundo fazer uma viagem de uma cidade para outra, em pé. Ela me contou das viagens que fez naquela escada, e de uma vez em que um homem sentou entre o encosto do banco e a porta de saída — só vendo pra entender.

Viagem na escada do ônibus
Duas pessoas sentadas numa escadinha. Todo mundo olhando. A porta abrindo bem a nossa frente. Ri, mas fiquei preocupada

Em três anos morando em Juiz de Fora, somente uma vez viajei em pé. Na ocasião, sentei num banco preferencial (o único que ainda estava vago) e no último ponto subiu uma senhora. Geralmente quando o ônibus está muito cheio, pego o próximo. Contei isso a ela. Um diálogo levou ao outro, até que chegamos aquele ponto da conversa, o ponto onde a pessoa pergunta o que eu estudo.
— Psicologia — eu disse, no que ela respondeu, com alegria:
— Deus te abençoe!

Foi nesse momento que eu soube que essa mulher viraria um post — não posso dizer "estranha", como me refiro aos estranhos que acabo escrevendo sobre, porque essa eu soube o nome dela, da filha, dos parentes, a casa onde morava, e até mesmo o nome da cachorra. A viagem de SD/JF leva mais ou menos uma hora e quinze minutos, tempo suficiente para qualquer um me contar uma boa parte da sua vida. Após ouvir "Psicologia", isso geralmente acontece.

Ela me contou que havia largado os estudos, com 11 anos, devido a um incidente com um professor. Como ela mesma disse, hoje em dia isso teria dado processo, mas há quarenta anos atrás as coisas eram diferentes. Contou a história rindo, mas eu consegui ver o peso que esse fato teve na vida dela.
Quando criança, um professor pediu aos alunos que fizessem um resumo da matéria, destacando os pontos mais importantes, da forma como tinham entendido. Ela fez o trabalho, com todo o capricho, e pediu a irmã que fizesse uma capa para ela, já que a irmã tinha uma letra bonita — e ela também, pelo que me disse. Boa aluno que era, fez o resumo com todo o capricho, porém, sem ser um resumo de fato: acabou copiando quase a matéria toda. No que o professor, pegando o trabalho dela, e mostrando pra toda a turma, ia folheando cada página, dizendo o quanto ela fez tudo com capricho, e elogiando a letra bonita. Até que por fim, ele diz: "um trabalho muito caprichado, mas copiou a matéria toda. Você pode muito bem fazer companhia aos moradores da praça das carroças".

Praça das Carroças: lugar em Santos Dumont que, como o nome sugere, ficam "estacionadas" várias carroças, cavalos e burros. 

É de se imaginar qual foi a reação da turma, e também é de se imaginar que os pais, dado a época, relevaram o fato — o que ela mesmo acabou relatando para mim. Com isso, essa moça acabou deixando de frequentar as aulas de tal professor, e com permissão da mãe — somente com a permissão dela — deixou de frequentar a escola no ano seguinte. Mas, ela me contou, somente com a promessa de que "viraria gente". Largaria a escola, mas "viraria gente".

A Estranha-que-não-é-estranha (e cujo nome não me sinto a vontade de revelar) me contou toda sua história, desde o dia em que largou a escola, até começar a trabalhar em casas de família, vindo a se tornar uma excelente cozinheira. Ela parecia mesmo uma excelente cozinheira, e me ensinou a receita de um doce de maracujá com três camadas, que eu tive vontade de tentar fazer.

Nós continuamos conversando, eu achando curiosa a escolha de palavras dela ("viraria gente") e pensando no quanto estamos acostumados a reduzir inteligência e capacidade a um diploma. Me formei no ensino médio e faço curso superior, mas tenho certeza que não conseguiria cozinhar como ela, nem mesmo se tentasse. Enquanto conversávamos, tivemos que levantar várias vezes para deixar as pessoas descerem do ônibus, o que tornou o contato mais engraçado. Por fim, conseguimos lugar para sentar, mas acabamos descendo logo depois, no mesmo ponto, e caminhei com ela até perto da minha casa. Ela estava indo ao hospital, visitar um parente. Disse para eu adicioná-la no Facebook e passar na casa dela um dia, "pra comer uns doces". Ela falou muito de doces durante a viagem. Senti que valeu a pena ter atrasado. Saio sempre grata por esses pequenos contatos que a vida me traz. Acho incrível a grande variedade de pessoas e histórias que podemos conhecer.


Costumo narrar conversas com estranhos aqui no blog. Expliquei isso no post "Falando com estranhos" e arquivo todos os casos na Tag "Crônicas";

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11 comentários

  1. Adorei sua pequena aventura de diálogos nessa viagem. Confesso que mais uma vez acompanhei a leitura imaginando todas as cenas em pequenos detalhes do ônibus com a foto que postou. E que situação essa senhora passou.
    LI MARACUJÁ
    LI DOCE...
    OPA
    Menina, que engraçado isso né? tudo que a vida faz pra contornar a rotina e a gente só percebe quando tomamos iniciativa de algo! Adorei ler o seu relato.

    Harmonizar | Beijos.

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    1. Que situação mesmo! Fiquei revoltada com o professor que fez isso.

      Eu acho que dá pra contornar a rotina até em coisinhas simples, a gente só precisa ficar atenta pra perceber.

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  2. Eu adoro suas crônicas e como elas sempre me fazem pensar. Legal como fatos rotineiros, ou nem tanto, podem nos fazer refletir sobre assuntos como esses.
    Achei o termo que essa senhora usou, "virar gente", "pesado" (estou usando esta palavra, por não saber que outra escolher)... Situações como essa sempre me levam à conclusão de que até mesmo os menores acontecimentos podem mudar (ou quase) completamente nossas vidas e a forma como vemos o mundo.

    Adorei a crônica da vez.
    Doce <3
    Beijos!

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    1. Também achei pesado. É engraçado como um acontecimento que parece (mas só parece) banal acaba mudando a vida das pessoas né? A história dela praticamente gira em torno desse fato, tanto que ela acabou compartilhando com uma pessoa que viu pela primeira vez em um ônibus....

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  3. E quando compartilho aqui em casa as amizades que faço em filas e em ônibus meus pais dão risada. Há tantas histórias por aí. Alias algo que não sei explicar, mas as pessoas se sentem a vontade em se abrir comigo logo de cara. Lendo seu encontro fico imaginando com o passado dessa senhora foi conturbado e o tanto que ela sofreu, mas fico feliz em saber que ela seguiu em frente e não desistiu da vida.

    Pessoas como o ex professor dela é o que mais tem no mundo =/

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    1. Eu adoro essas histórias! ahahah' Escreve sobre as suas também, Clayci, eu ia adorar ler <3

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  4. Que história mais gostosa! Sobre andar sentada no degrau do ônibus, já fiz algumas vezes, morro de medo também. E sobre essas conversas do acaso, que calor no coração! Adoro pensar que coisas que deveriam nos frustrar, como atrasos, nos levam a algo precioso.

    Te respondi tardiamente, obrigada por passar por lá!

    beijão

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    1. Dá a impressão que a porta vai abrir e você vai parar na rua né? usahushausha'

      Obrigada pela resposta :D

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  5. Eu amo tanto seus posts sobre as pessoas que surgem do nada na sua vida huahua, eu leria um livro só com essas histórias <3 <3 aiai

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    1. Awnnnn <3<3 Eu já escrevi pensando que você ia gostar de ler ahahah <3

      Beijos!!

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  6. marinaaa!! tinha dado uma olhadinha no seu blog algumas vezes, mas nunca parei pra leeer (a falha dos consumidos pela velocidade do dia-a-dia). você comentou lá no meu, eu vim ler e qual não foi a minha surpresa quando 1) descobri que moramos pertinho e 2) li seus posts e vi que eles são maravilhosos!!! eu amo quando volto a algo que não dei tanta atenção antes e descubro que é uma preciosidade, haha.

    me lembro demais de quando eu estava no ensino médio e pegava ônibus pra ir e voltar da escola, e sempre tinha algum vovô ou vovó pra puxar assunto. adorei que vocês engataram numa conversa a viagem toda, hahaha.

    sua escrita é muito gostosa!!!

    beijos <3

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