Um outro diálogo real mas fictício

segunda-feira, maio 01, 2017

— Eu não o vejo há um bom tempo, como você está?
— É, eu tenho andado ocupado...
— O que você tem feito? Como está se sentindo?
Suspiro.
— Bom, eu tenho feito coisas, coisas pra me distrair. Estou naquela fase onde meu humor está rebaixado. Pra ser sincero, não consigo me lembrar de uma fase onde meu humor não estivesse. Faço tudo o que sempre fiz: saio com meus amigos, como coisas gostosas, rio de piadas, leio meus livros... o de sempre, tudo mais do mesmo.
— E por que eu sinto esse tom de "porém"? O que mudou?
— Nada mudou... eu não sinto mais prazer em nada, não sei se algum dia já senti. Os outros parecem sentir tanto, prazer e dor, alegria e sofrimento, tristeza e raiva... eu não sinto nada disso. O mundo delas parece ser tão colorido, e o meu, infinitos tons de cinza. Tudo é frio, vazio e sem graça. Não consigo preencher esse buraco, nem sei se deveria... sou uma pessoa oca por dentro.
Pausa.
— A vida tem gosto de terra. O sabor que as outras pessoas percebem, eu não consigo identificar. Não consigo encontrar o que me traz alegria, não consigo encontrar o que faz meu coração vibrar, não consigo encontrar um motivo para levantar pela manhã... todas as pessoas parecem ter um.
— Todas as pessoas? Você acha que é o único?
— Único não, sozinho... como sempre. Acho que eu sou uma pessoa quebrada. Tropecei em algum lugar da minha existência, me espatifei em um monte de pedaços e agora não consigo mais juntá-los. Sou um relógio quebrado que não consegue funcionar 24 horas sem travar em algum momento. Sou uma pessoa que não consegue viver todos os dias sem travar em algum deles...
— Você diz coisas muito duras sobre si mesmo.
— Eu sei.
— Você não é uma pessoa quebrada, você é uma pessoa completa. Pessoas não quebram.
— Eu sei. É que, às vezes...
— ...as coisas ficam difíceis demais?
— Sim. Eu só queria... poder... sabe...
Silêncio.
— Desistir?
— Também... Eu queria ser como as outras pessoas, levar a vida que os outros levam, ao menos uma vez... só uma vez.
— Eu entendo.
— Eu sei. Isso não torna as coisas mais fáceis. Eu continuo sendo eu, você continua sendo você, eu continuo não "funcionando", o mundo continua existindo... O tempo não espera o relógio destravar pra continuar passando, o tempo apenas passa, e então o relógio se atrasa. Eu me atraso.
Suspiros. De ambas as partes.
— Essa é sua condição, é seu jeito de ser no mundo, você só precisa aprender a lidar.
— Você quer dizer o fardo não é? Eu sou o fardo que eu tenho de carregar
— Não foi isso que eu quis dizer.
— Mas foi o que disse. Não quis, mas disse. Porque é assim que é. Não tenho de me preocupar com os outros, sou meu próprio juiz, juri e carrasco. Sou a minha própria cruz. Ninguém deveria ser condenado a viver desse jeito.
— Isso não é uma maldição. Pense que, por sempre carregar um peso tão forte, consegue com mais facilidade aliviar o peso dos outros.
— É uma forma bonita de se ver isso, mas passa longe de ser verdade. Não quero aliviar o peso de ninguém. 
— E não deveria... primeiro lide com você, depois os outros. Você vai encontrar uma forma de lidar com isso, vai ficar tudo bem.
— Você é sempre tão otimista.
— Alguém tem de equilibrar seus excessos.

Postei "um diálogo real mas fictício" por aqui ano passado. Não foi minha intenção fazer uma continuação, mas aconteceu. Eu não vou explicar, deixo aberto a interpretações. Só queria mesmo linkar o primeiro post. O diálogo é diferente, mas tem o mesmo formato. Tenham um bom feriado!

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14 comentários

  1. Amei o texto, muito lindo.
    Me identifiquei em certas partes...
    Parabéns.
    Beijos!
    sentimentos-de--uma-garota--bipolar.blogspot.com

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  2. Super entendo o lado da pessoa que diz não sentir nada...
    Passei por isso e não tem muito tempo, esse vazio é muito ruim, não ver motivos para se levantar de manhã... Sei como é, é péssimo, porém como tudo na vida, passa.
    Amei o texto.

    Beijos!
    visao-distorcida.blogspot.com.br

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    1. Assim como passa as coisas "boas" que ele diz, passa também as "ruins". Ainda bem né?

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  3. Eu sempre fui a pessoa que diz não sentir nada. =/
    Eu faço o que tenho que fazer: saio, dou risada, me distraio.. mas na hora de vir embora fico me perguntando o que eu estava fazendo lá? rs

    Mas passa..
    passa..
    pa....

    rs
    Amei seu diálogo
    Beijos

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    1. Oi Clayci!

      Ainda bem que passa não é? Já conseguiu identificar o que te faz sentir assim quando sai de um evento desse tipo? Já vivi isso várias vezes, e nunca sei se estava me divertindo de verdade ou apenas atuando. A vida é tão complicada

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  4. Ultimamente tenho visto tanta gente, mas tanta gente (incluindo eu mesma) passando por situações exatamente assim, e tendo diálogos exatamente assim.

    E daí eu pergunto...

    Nós estamos ocos, ou é o mundo que é oco? Quero dizer, a sociedade nos indus a transmitir um estado de satisfação e felicidade que não é real e é impossível de atingir (e isso acontece por vários motivos), então... não seria essa a causa de todos esses "vazios"? Será que ele realmente existe ou somos levados a acreditar que sim? De toda forma, o resultado é catastrófico.

    Desculpe o comentário longo, me empolguei com seu post, que aliás é muito bom.
    Abraços!

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    Respostas
    1. Lu, sabe que eu também observo o mesmo? E me pergunto se é nossa sociedade atual que gera isso, ou se sempre fomos assim, apenas não dávamos nomes as coisas. Será que esse vazio que a gente diz não faz parte da condição de ser ser humano?

      Muito obrigada pelo comentário longo, eu me empolgo com eles ;)

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  5. Olá. Que texto lindo. Me identifiquei bastante, o vazio que é sentido é horrível. Sempre disse que não sinto nada, parte é realmente verdade eu não sinto nada, porém existem pequenos momentos que sinto algo. Ando inconformada com esse meu lado e até mesmo de outras pessoas, acho que desonesto. Não vou explicar pois o comentário ficaria extenso, mas você pode interpretar do modo que quiser. Por último, acho que poderíamos nos permitir nos sentir algo. Nos permite sentir vivos.
    Colecionando Palavras

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    1. Mas é a gente que não se permite sentir? A minha dúvida é se essa falta de sentimento é realmente falta de sentimento ou apenas excesso... Todas as pessoas que dizem não sentir me parecem ser as que mais sentem (um grande paradoxo). Talvez "não sentir" seja um bloqueio para as consequências de sentir demais... Adorei seu comentário <3

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  6. "O tempo não espera o relógio destravar pra continuar passando, o tempo apenas passa, e então o relógio se atrasa. Eu me atraso."
    Eu gostei muito desse trecho, me sinto assim todos os dias. E sinto-me horrível quando o dia passa e não fiz quase nada, o tempo não me espera :c
    Eu gosto sempre do que você escreve, você emana sentimentalismo <3.

    Com amor,
    Bruna Morgan

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    1. Tava mesmo esperando seu comentário Bruna <3

      Mesmo sendo como somos, ainda temos de dar conta de viver como os outros. Já tive meus momentos onde travei e precisei continuar, de um jeito ou de outro, porque tinha responsabilidades pra lidar. O tempo não espera ninguém

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  7. Olá Marina, joia?
    Eitaa, top o texto, muito lindo, gera reflexão.
    Uma pessoa chegar a esquecer de um prazer que já viveu, é algo bem tenso.
    Parabéns pela postagem! Gostei muito.

    Abraços
    https://rabiscoscolorido.blogspot.com.br/

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